O leilão da CEEE-D, em 31/03/2021, expressa uma das grandes questões do século XXI: o que leva os indivíduos a agirem contra si, julgando estarem na posição mais correta? A psicanálise busca responder à questão através das profundas crenças do inconsciente, longe das razões objetivas. Coincidindo com a véspera do leilão da CEEE-D, o grande psicanalista Contardo Calligaris nos deixou. É dele a frase: "Em ordem cronológica, Deus, família e pátria são, em nossa história, as grandes matrizes do mal e da imoralidade: é em nome desses três espantalhos que a humanidade se permitiu cometer seus piores crimes".
A frase nos remete ao leilão. Agradecendo a Deus e à família, o próprio presidente da companhia estatal profere três marteladas contundentes, arrematando a companhia pelo valor de dois carros populares (R$ 100 mil) ao adquirente privado. Vamos aos fatos objetivos.
A privatização da CEEE-D foi autorizada por lei. O ponto é a modelagem do negócio. A CEEE-D deve cerca de R$ 3,4 bilhões de ICMS ao Estado acionista (R$ 600 milhões pertencentes aos municípios). Ao invés de submeter um projeto de lei ao Parlamento gaúcho, perdoando a dívida do Estado (principal acionista) e assegurando a parte dos municípios (com garantias reais, cronograma e prazos), optou-se por outro caminho. Uma operação societária, de consistência questionável, visando um resultado único: os impostos recolhidos dos contribuintes e não repassados ao Tesouro tinham de virar um cupom de descontos de R$ 2,8 bilhões para o futuro adquirente. Somente assim, chegava-se ao preço inicial de R$ 50 mil.
A dívida de R$ 2,8 bilhões ficará na CEEE-Par, uma controladora com patrimônio líquido negativo em torno de R$ 1,0 bilhão, ou seja, sem garantias reais. A parte dos municípios (R$ 600 milhões) está condicionada à controversa operação societária, onde ainda cabe exame de mérito pela Justiça.
Também fica para o Estado o passivo previdenciário de R$ 313 milhões, referente aos ex-autárquicos da CEEE-D. O governo menciona uma economia de R$ 3,5 bilhões com futuros investimentos em melhoria que o Estado deixaria de fazer. Por sua vez, não há garantias objetivas que o adquirente privado fará. Os ganhos para o privado no presente, os do Estado ficam para o futuro. Uma conta singela revela o péssimo negócio para a sociedade gaúcha. Contardo estava correto.
Filipe Leiria - Vice-presidente do Sindicato dos Auditores Públicos do Tribunal de Contas, publicado no Jornal do Comércio (05.04)