A Constituição de 1988, em seu artigo 100, não apenas instituiu um rito ordenado para a quitação dos débitos da Fazenda Pública, mas também consagrou a submissão do poder público à autoridade da coisa julgada, exigindo a previsão orçamentária para saldar essas obrigações. Essa vinculação orçamentária é a manifestação concreta do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva (artigo 5º, XXXV, Constituição), transformando a sentença definitiva em um comando inafastável para o gestor público.
A previsibilidade — a clareza sobre o montante, o prazo e o destinatário do pagamento — constitui a espinha dorsal desse sistema. Qualquer ruptura nessa cadeia de certeza, seja por meio de moratórias, parcelamentos ou subterfúgios legislativos, não configura apenas uma falha de gestão orçamentária, mas sim um esvaziamento do próprio direito material reconhecido pela Justiça.
As regras para o pagamento dos Precatórios, estabelecidas com a Constituição de 1988, começaram a sofrer alterações ainda nos anos 2000, com o advento da EC nº 30, a qual veio a introduzir a possibilidade de parcelamento. No entanto, foi com a EC nº 62/2009 que viemos a sofrer a grande virada, sendo então instituído um “regime especial” que permitia aos entes federados em mora parcelar suas dívidas judiciais por até 15 anos. Sob o pretexto de solucionar um passivo histórico, essa emenda acabou por normalizar o descumprimento das ordens judiciais, tratando-o como ferramenta de gestão fiscal.
Não bastasse isso, o Poder Legislativo ainda foi mais adiante na busca de “Constitucionalizar o Calote dos Precatórios”, criando alternativas para perpetuar essa flexibilização, surgindo então as Emendas Constitucionais nºs 94/2016 e 99/2017, as quais não apenas recriaram mecanismos do regime especial, mas também estenderam seus prazos (até 2024), consolidando uma cultura de postergação e transformando o adimplemento de sentenças em moeda de troca política, distanciando-se cada vez mais da intenção constituinte originária.
Em 2021 acabamos tendo nova surpresa, com o advento da EC nº 109, a qual estendeu novamente o prazo do regime especial, agora até 2029.
Pouco depois, a EC nº 114/2021 impôs um teto de pagamentos para a União (válido até 2026, conforme artigo 107-A do ADCT) e, crucialmente, antecipou a data limite para a apresentação de precatórios a serem incluídos no orçamento seguinte, passando de 1º de julho para 2 de abril (artigo 100, §5º, Constituição). Essa alteração, justificada pela necessidade de alinhamento ao teto de gastos, possui implicações distintas dependendo do regime aplicável ao ente devedor.
Para os entes que seguem o regime geral (adimplentes), a apresentação até 2 de abril assegura, em tese, o pagamento até o final do exercício subsequente. Contudo, para aqueles submetidos ao regime especial do artigo 101 do ADCT (diversos estados e municípios), a realidade é outra. O pagamento se dá por meio de repasses mensais calculados sobre a receita corrente líquida, e a inscrição até 2 de abril apenas garante um lugar na fila cronológica, sem assegurar o pagamento integral no prazo ordinário.
Se as reformas anteriores representaram flexibilizações crescentes, a Proposta de Emenda Constitucional nº 66/2023 sinaliza um passo além: a possível inscrição do próprio inadimplemento como regra permanente na Constituição, ao menos para os municípios, mas que, caso aprovada, abrirá caminho para os Estados também se valerem da mesma condição.
Apelidada de “nova PEC do calote”, a proposta visa limitar o pagamento anual de precatórios municipais a percentuais da receita corrente líquida, criando uma escala onde entes mais endividados teriam prazos ainda mais longos para quitar seus débitos.
Essa lógica inverte o princípio da responsabilidade: a mora contumaz seria premiada com prazos mais elásticos. A proposta ataca frontalmente a sistemática do artigo 100, §5º (pagamento no exercício seguinte) e a própria ordem cronológica, além de introduzir uma perigosa discricionariedade ao permitir que o gestor pague apenas o piso estabelecido, mesmo havendo recursos.
O que se pretende com a PEC 66 não é mais gerir uma situação excepcional de crise, mas sim normalizar a postergação do pagamento como ferramenta ordinária de administração fiscal. É a consolidação de um “Estado Orçamentário” que se sobrepõe ao Estado de direito, onde a força da coisa julgada cede espaço à conveniência contábil.
A inadimplência estatal institucionalizada, como ameaça a PEC 66/2023, não afeta apenas os credores diretos; ela contamina a percepção social sobre a própria utilidade da Justiça. O enfraquecimento do Judiciário como poder capaz de impor suas decisões ao Estado fragiliza o pacto democrático. A
situação é particularmente grave em relação aos precatórios de natureza alimentar, cuja demora no pagamento representa, na prática, a negação de direitos essenciais ligados à dignidade humana e à subsistência, violando também a garantia da duração razoável do processo.
Essa normalização do inadimplemento representa uma perigosa inversão: a Constituição, que deveria garantir a execução das sentenças, passa a ser utilizada para legitimar seu descumprimento, privilegiando a gestão fiscal em detrimento da autoridade judicial.
Reconhecer as dificuldades financeiras dos entes públicos é necessário, mas não pode servir de justificativa para desmontar a estrutura de garantias que sustenta a autoridade das decisões judiciais. A crise fiscal não revoga a Constituição nem a força da coisa julgada.
A eventual aprovação da PEC 66/2023 acabará por abalar em definitivo a credibilidade do sistema, consolidando a desconfiança na capacidade do Estado em honrar com suas próprias dívidas judiciais. Sem uma jurisdição efetiva, cujas sentenças possuam força vinculante real sobre todos, inclusive o Estado, a promessa constitucional de Justiça torna-se letra morta.
A PEC 66/2023 é péssima para os credores e catastrófica para a sociedade em geral, pois os Estados e Municípios se sentirão estimulados a não equacionar seus débitos em precatórios, fazendo com que a dívida aumente cada vez mais.
Resistir a essa tendência de fragilização é um imperativo jurídico, político e cívico. É preciso reafirmar que o precatório simboliza um direito concretizado pela Justiça, e sua satisfação tempestiva é condição indispensável para a vitalidade da nossa democracia.
Ricardo Hanna Bertelli - assessor jurídico - Sinapers

